Demências são condições neurológicas progressivas que afetam a capacidade cognitiva e funcional de um indivíduo, impactando significativamente sua memória, linguagem, julgamento e habilidades de raciocínio. Embora frequentemente associadas ao envelhecimento, é importante ressaltar que a demência não é uma consequência natural do processo de envelhecer. Existem diversos tipos de demências, sendo a doença de Alzheimer a mais conhecida e prevalente. As causas das demências podem variar, incluindo fatores genéticos, degenerativos e vasculares, e sua manifestação pode alterar profundamente a vida diária do paciente e de seus familiares. Reconhecer os primeiros sinais e buscar intervenções precoces são essenciais para melhorar a qualidade de vida e retardar a progressão da doença.
Entrevistamos o Dr. Fabio Porto, renomado neurologista, que responderá questões pertinentes sobre o tema, esclarecendo dúvidas e abordando os avanços mais recentes na área.
Afinal, o que é demência e como ela se difere de esquecimentos comuns que todos nós temos?
O termo “demência” é frequentemente visto com significado negativo, indicando “loucura”, “insanidade” ou “descontrole”. Mas tecnicamente falando, demência é uma síndrome (um conjunto de sinais e sintomas que têm várias causas) caracterizada por:
- Declínio cognitivo: ocorre redução de algum aspecto da cognição (memória, atenção, linguagem, funções executivas, percepção visual, cognição social, etc). É importante ressaltar que a função cognitiva precisa piorar (ao contrário de algumas situações em que sempre houve uma dificuldade cognitiva).
- Alterações de comportamento: muito frequentemente ocorrem mudanças comportamentais que refletem as alterações do funcionamento do cérebro, ou seja, a síndrome demencial não causa apenas problemas cognitivos. Mudanças de humor, ansiedade, apatia, dificuldades de controlar impulsos e até mesmo psicoses (ideias falsas ou delírios, percepções sem estímulo ou alucinações) podem acontecer.
- Declínio funcional: a pessoa afetada não consegue viver com a mesma capacidade funcional ou independência que antes. Nas fases iniciais, isso se reflete com a dificuldade de executar as funções do trabalho, dificuldades de lidar com as finanças, esquecimento com as medicações, entre outras. À medida que os sintomas progridem, atividades como escolher as próprias roupas, vestir-se e outras coisas simples do dia a dia são afetadas.
Quais são os primeiros sinais ou sintomas de demência que as pessoas devem ficar atentas?
Aqui é importante definirmos de qual demência estamos falando, já que demência é uma síndrome e não uma doença por si própria. A principal causa de demência é a doença de Alzheimer, que, na sua apresentação clássica, causa uma dificuldade progressiva em aprender novas informações. Nesse caso, ocorrem repetições das mesmas perguntas ou sentenças, perda de objetos pessoais, dificuldades de lembrar se uma atividade já foi feita (uma conta de luz, por exemplo). Dificuldades de localização, como se perder ao dirigir, também podem acontecer. Esses sintomas são causados pelo acometimento das regiões do cérebro que processam as memórias recentes, na doença de Alzheimer. Mas cada tipo de demência pode ter um sintoma inicial diferente. Podem ocorrer dificuldades de linguagem (não achar palavras, não conseguir entender as conversas, não saber o significado das palavras), sintomas atencionais ou executivos (dificuldade de organização, planejamento ou de colocar um plano em ação), dificuldades na cognição social (redução da empatia, desinibição, dificuldade de perceber emoções, etc). O que une as demências é a perda da funcionalidade devido à soma das alterações cognitivas e comportamentais.
Um ponto importante é que a demência não é um desfecho normal com o envelhecimento. O termo muito usado “demência senil” na verdade significa demência após os 65 anos, e não “demência pelo envelhecimento normal”.
Existem diferentes tipos de demência? Se sim, você poderia explicar um pouco sobre as diferenças entre eles?
Demência é a síndrome. Mas existem várias causas de demência. Podemos didaticamente dividir entre causas degenerativas e não degenerativas.
Degenerativas: situação em que ocorre acúmulo anormal de proteínas no cérebro que causam a disfunção e morte dos neurônios nas regiões afetadas. Cada doença tem um tipo específico de proteína, como as proteínas amiloide e tau na doença de Alzheimer. Lembrando que estamos falando de proteínas que ocorrem no corpo, e não proteínas que ingerimos na dieta. A doença de Alzheimer é a causa mais comum de demência em todas as idades. Outras demências degenerativas, como a demência frontotemporal (que afeta o comportamento e/ou a linguagem inicialmente), demência com corpos de Lewy (uma demência com sintomas tipo Parkinson, dificuldades visuais e alucinações visuais), um conjunto de demências que causam sintomas motores chamados de parkinsonismos atípicos, entre outras.
Não-degenerativas: Aqui temos a demência causada por lesões vasculares no cérebro, ou AVCs. Nesse caso, não há proteínas anormais acumuladas no cérebro, mas a destruição dos neurônios ou de suas conexões pelas isquemias é responsável pelos sintomas. Outros exemplos de causas não-degenerativas são tumores cerebrais, hipotireoidismo, deficiência de vitamina B12, inflamações ou infecções no sistema nervoso central, traumatismos cranianos, etc.
Em que fase da vida as alterações cognitivas e a demência costumam aparecer? Isso é algo que só afeta os mais idosos?
As demências normalmente são doenças relacionadas ao envelhecimento (mas não parte normal dele). Desta maneira, a prevalência (número de pessoal com o diagnóstico) aumenta exponencialmente após os 65 anos. Como a população mundial está envelhecendo, o número de pessoas vivendo com demência está aumentando. No entanto, existem casos mais raros de demências em pessoas com menos de 65 anos, chamadas de demências pré-senis.
Como a tecnologia e a inovação estão ajudando no diagnóstico ou tratamento da demência?
A tecnologia e inovação têm sido fundamentais para vários aspectos nas demências, desde diagnóstico precoce, acesso a informações relevantes sobre a doença (psicoeducação), acesso aos tratamentos e manejo de sintomas comportamentais. Por exemplo, testes cognitivos automatizados e à distância podem servir como forma de rastreio de alterações cognitivas, inovações na capacidade de diferenciar os vários tipos de demências com exames mais simples e menos invasivos como exames de sangue, acesso a grupos de familiares de pessoas vivendo com demência através da internet (um exemplo disso, são os grupos de apoio online da ABRAz – Associação Brasileira de Alzheimer) e até o uso de robôs para manejo não-farmacológico de sintomas comportamentais (nas fases mais avançadas das demências). Enfim, existem inúmeras estratégias em que a tecnologia e inovação podem ajudar.
Quais são os principais fatores de risco para o desenvolvimento de demência e existe alguma forma de evitá-la?
Os principais fatores de risco para as demências são idade e genética, que são fatores de risco não modificáveis. Porém é possível reduzir a chance em cerca de 40%, segundo alguns estudos, intervindo em fatores de risco modificáveis. Os principais fatores de risco modificáveis são: baixa escolaridade, fatores de risco cardiovasculares como hipertensão arterial, diabetes, colesterol aumentado, sedentarismo, obesidade e tabagismo. Ao intervir nestes fatores, reduz-se a chance de doenças cerebrovasculares que ajudam a causar demência. Outros fatores como perda auditiva não corrigida, consumo excessivo de alimentos ultra-processados, exposição à poluição ambiental, isolamento social e depressão também são possíveis de serem prevenidos. A “correção” desses fatores não significa que a pessoa está livre de ter demência, mas reduz a chance da doença e pode também atrasar o seu aparecimento.
Como a demência afeta a vida diária de um paciente e seus familiares? Existem estratégias para tornar o convívio mais fácil?
As demências são doenças da família, pois seus sintomas causam grande impacto direto e indireto na vida das pessoas. As pessoas que vivem com demência vão tendo uma perda progressiva da independência e vão necessitando cada vez mais de supervisão e cuidado. Além disso, o tratamento medicamentoso e as reabilitações vão sendo cada vez mais necessárias (fisioterapia, reabilitação cognitiva, terapia ocupacional, fonoterapia, etc). Esses são os custos diretos. Os custos indiretos refletem o fato que frequentemente alguém da família tem que parar com as atividades de sua vida para cuidar do parente com demência. Além de questões financeiras, existe um enorme sofrimento emocional associado ao quadro, estresse e sobrecarga dos cuidadores e dificuldades de lidar com as alterações de comportamento que acontecem nas demências.
Existem tratamentos disponíveis que podem desacelerar ou reverter os sintomas da demência?
Sim. Existem tratamentos que desaceleram a progressão das demências, além de tratamento sintomáticos para a maioria dos sintomas associados às demências. Recentemente, novos tratamentos que desaceleram a progressão da doença de Alzheimer estão sendo estudados e recentemente foram aprovados nos Estados Unidos e estão sendo avaliados pela ANVISA. Raramente existem causas potencialmente reversíveis de
Há algum avanço recente na pesquisa sobre demência que o público deveria saber?
Os principais avanços nas pesquisas foram uma melhor compreensão dos fatores de risco para as demências e como preveni-las. O melhor entendimento dos processos que acontecem no cérebro (por que e como as proteínas anormais se acumulam) e alguns tratamentos inovadores. Um grupo de medicações chamadas de “anticorpos monoclonais contra a proteína beta amiloide” consegue limpar a proteína amiloide que se acumula no cérebro na doença de Alzheimer. Isso é uma grande inovação, apesar de causar impacto clínico modesto. Outras novidades são tratamentos que podem reduzir aspectos inflamatórios relacionados às demências e tratamentos para sintomas comportamentais na doença de Alzheimer (especialmente agitação e agressividade).
Que conselho daria a alguém que acabou de receber um diagnóstico de demência ou à sua família?
O conselho seria “entender para aceitar”. Esse processo de “entender” é a parte racional do processo. Ter os conhecimentos necessários para compreender os fatos a respeito das demências, os sintomas cognitivos e comportamentais, a progressão e o que esperar do tratamento e evolução. Algumas vezes ter uma “segunda opinião” médica… “Aceitar” não é sinônimo de “entender”. Aceitar é o aspecto emocional e está relacionado com aceitação e resiliência. A aceitação reduz o sofrimento psíquico. Facilita as mudanças comportamentais que são necessárias no manejo das demências. Por isso, o acesso a grupos e associações sobre a doença é parte fundamental do tratamento.
Como as aplicações e dispositivos de monitorização podem ajudar no dia a dia das pessoas com demência ou dos seus familiares?
Nas fases moderadas das demências, é comum ter dificuldade de localização e sintomas de perambulação (sair andando de forma descontrolada). Isso causa o risco da pessoa com demência se perder ou se colocar em riscos. Os dispositivos de localização, por exemplo, podem ajudar a reduzir o risco nessas situações.
Há alguma tecnologia emergente, como inteligência artificial ou realidade virtual, que promete revolucionar o modo como entendemos ou tratamos a demência?
A inteligência artificial pode ajudar (não revolucionar) em algumas situações. Especialmente nas fases leves das demências, onde apenas atividades complexas estão comprometidas. A inteligência artificial pode prolongar a independência.
Como a telemedicina está impactando o diagnóstico e o tratamento da demência, especialmente em áreas rurais ou para pessoas com mobilidade reduzida?
Sem dúvida o Brasil é um país continental e não temos especialistas o suficiente para avaliar todas as pessoas que vivem com demência. Dessa forma, a telemedicina é uma solução inovadora para esse problema. É possível avaliar as pessoas por telemedicina e fazer avaliações cognitivas automatizadas ou por profissionais de saúde, através de aplicativos de telemedicina. Durante a pandemia de COVID-19, esse formato de atendimento se expandiu muito e provavelmente vai continuar ajudando na prática clínica.
Colaboração: Doutor Fábio Henrique de Gobbi Porto, Neurologista especializado em Neurologia Cognitiva e do Comportamento – CRM 121717
*O conteúdo desta matéria tem caráter informativo e não substitui a avaliação de Profissionais da Saúde.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.
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