Para contextualizar a importância de um texto sobre a reabilitação neuromotora, retorno a 15 anos atrás, quando eu, no auge dos meus 21 anos, sofri um acidente de carro e fui diagnosticado com um trauma raquimedular, ou seja, uma lesão medular —uma lesão na medula espinhal. Confesso que, na época, sabia pouco sobre a existência da medula espinhal em nosso corpo e muito menos sobre sua importância, tanto para o movimento quanto para as sensações. 

 

O que é medula espinhal?

A medula espinhal é uma estrutura vital no corpo humano. Ela funciona como um grande cabo de comunicação que liga o cérebro ao resto do corpo. Sua principal função é transmitir sinais nervosos entre o cérebro e as diversas partes do corpo, permitindo a realização de movimentos voluntários, como andar ou pegar objetos, e também o controle de funções involuntárias, como a respiração e a batida do coração.

Além disso, a medula espinhal é responsável pela sensação de toque, dor, temperatura e outras sensações, atuando como um centro de comando que recebe informações do ambiente externo e interno do corpo, processa essas informações e envia respostas apropriadas. Portanto, qualquer dano à medula espinhal pode afetar significativamente a capacidade de uma pessoa se mover ou sentir.

Como no meu caso, ocorrendo um trauma raquimedular, que é uma lesão na medula espinhal, geralmente o impacto ou dano ocorre nas vértebras que protegem a medula espinhal, e com isso, interrompe a comunicação entre o cérebro e as partes do corpo abaixo do local da lesão.

Isso acontece porque a medula espinhal, que contém os nervos responsáveis por enviar mensagens para o cérebro, fica danificada. Como resultado, a pessoa pode perder o movimento (paralisia) e a sensação nas áreas do corpo que são controladas pela parte da medula espinhal afetada. A gravidade do trauma e a localização específica da lesão determinam a extensão da paralisia e da perda de sensação. Além disso, outros sistemas corporais, como o controle da bexiga e do intestino, função sexual e regulação da pressão arterial, podem ser afetados.

Pois bem. A medula espinhal é uma estrutura vital, extremamente importante para o funcionamento do nosso corpo humano.

Lembro-me de ter recebido esse diagnóstico e de ir entender mais sobre os tratamentos a fim de recuperar ou melhorar alguns movimentos e, consequentemente, minha qualidade de vida, autonomia e independência.

Para minha surpresa, fui informado sobre a não existência de um tratamento específico e focado para recuperação neuromotora. Todos os tratamentos e grandes centros existentes no Brasil eram focados apenas em reabilitar o paciente sobre essa nova condição e encorajá-lo a seguir sua vida de forma “adaptada”. Costumo resumir, dizendo que os trabalhos existentes até então eram focados em ensinar o cadeirante a ser cadeirante.

Naquela época, ao sofrer um trauma raquimedular, provavelmente você passaria por um centro de reabilitação, onde entenderia mais sobre as complicações secundárias decorrentes da lesão medular, teria apoio psicológico e médico sobre a sua nova condição, receberia todo o suporte de entendimento do seu corpo, seria introduzido a alguns exercícios para fortalecer os membros preservados, a fim de melhorar a sua força e autonomia para se tornar uma pessoa independente dentro do possível, e receberia alta para seguir a sua vida.

Naquela época, após ter conquistado minha independência e autonomia, estar 100% adaptado em uma cadeira de rodas e pronto para buscar novas possibilidades, indaguei o médico sobre os próximos passos para buscar uma recuperação plena dos movimentos, e a frustração ao ser informado sobre a não existência de um método, pesquisa ou trabalho voltado a esse tipo de abordagem.

Até então, essa era a única abordagem existente, e, uma vez independente, eu deveria seguir a minha vida normalmente dentro dessa condição. A estratégia que tinha era buscar uma academia para fortalecer os membros preservados, pois agora meus braços seriam também minhas pernas.

Não que não concorde sobre a importância de tudo isso dito acima, mas me pareceu pouco diante das possibilidades da vida de um jovem de 21 anos. Como não existe um trabalho voltado e focado na parte de recuperação neuromotora? A tecnologia e ciência vêm evoluindo a grandes passos, como não existe algo sendo pesquisado e trabalhado para promover essa recuperação?

Esses foram alguns questionamentos que ficaram na minha cabeça por alguns meses, e assim segui minha busca por novos modelos de reabilitação.

Foi então que, por acaso, encontrei um vídeo de um rapaz com uma lesão medular fazendo uma série de exercícios físicos fora de sua cadeira de rodas, onde a maioria desses exercícios estimulava os segmentos abaixo do nível de lesão. Lembro de ver exercícios em uma esteira onde ele ficava com seu corpo suspenso, e os profissionais estimulavam e estimulavam as suas pernas a fazerem o caminhar.

Lembro-me de que, para mim, tudo aquilo fazia muito sentido, pois, mesmo que de fato não exista algo que promova uma recuperação plena da medula e do sistema nervoso central lesionado, parecia-me óbvio a necessidade de estimular os segmentos afetados não só para buscar a recuperação dos movimentos, mas também para evitar que os segmentos afetados entrassem em atrofia muscular.

Foi então a primeira vez que tive conhecimento e contato com um conceito ainda novo no contexto mundial sobre o trabalho de recuperação com pacientes com lesão medular, as Activity Based Therapies ou ABTs.

Basicamente, as ABTs são um programa multimodal de exercícios físicos, intensivo e específico, direcionado a estimular a neuroplasticidade.

De forma simples, a neuroplasticidade é a capacidade do cérebro de se modificar, adaptar e criar novas conexões entre os neurônios. Ela permite que o cérebro “reaprenda” a controlar movimentos e funções que foram comprometidos pelo trauma, utilizando áreas não afetadas para compensar as danificadas.

Por meio de terapias específicas e exercícios, pacientes podem estimular seu cérebro a formar novas rotas neurais, potencialmente recuperando movimentos e sensações perdidas, demonstrando a impressionante capacidade do corpo humano de se adaptar.

Após 3 meses de ter assistido ao vídeo e conhecido esse conceito, fui para os Estados Unidos, e, pela primeira vez, tive contato com esse novo modelo de recuperação neuromotora.

Até então, mesmo sem entender muito sobre o assunto, pude experimentar e vivenciar os benefícios do tratamento das ABTs no meu corpo. Fazia terapia todos os dias da semana, por 3 horas diárias. A maioria dos exercícios era feita fora da cadeira de rodas, em diversas posturas (deitado, ajoelhado, em pé), utilizando também alguns equipamentos de academia. O profissional que me atendia exigia que, mesmo sem ainda ter o movimento, eu focasse em tentar fazer o movimento a fim de estimular a neuroplasticidade. 

Agora, meu corpo era estimulado como um todo e não apenas as partes que haviam preservado função.

O mais incrível é que todos esses exercícios eram possíveis de ser realizados não com super equipamentos, mas sim com adaptações simples, onde o fator “mão humana do profissional da saúde” era imprescindível. Ele atuava como o meu sistema nervoso central, movendo meus membros inferiores a fim de estimular, através do movimento, a neuroplasticidade.

Em 6 meses, tive grandes conquistas de novos movimentos, melhora no controle do quadril, fortalecimento do core, aumento da sensibilidade abaixo do nível de lesão. Mas, mesmo sabendo que o tratamento era de médio a longo prazo e a recuperação não era garantida, a motivação de ter encontrado a possibilidade de me manter ativo e protagonista no meu processo de recuperação foi um divisor de águas na minha vida.

Após 1 ano de tratamento neste centro, motivado por minhas conquistas e experiências pessoais de ganhos e evolução, inaugurei em 2010 o Acreditando na cidade de São Paulo, pioneiro na América Latina, com o objetivo de trazer ao Brasil um conceito internacional para pessoas com lesões neurológicas que vai além do convencional, buscando instigar uma vida mais ativa e saudável com o foco nas possibilidades. Mas deixo para um próximo texto falar um pouco sobre o trabalho realizado no Acreditando no cuidado 360º do paciente com lesão neurológica.

Ao refletir sobre minha jornada de recuperação e o caminho que me levou a fundar o Acreditando, vejo o quanto o cenário atual da reabilitação evoluiu e vem evoluindo, mas reitero a importância vital da inovação, da necessidade de se pesquisar e buscar forma de estimular a reabilitação neuromotora no contexto mundial, pois ainda há muito o que ser conquistado e descoberto.

 

*O conteúdo desta matéria tem caráter informativo e não substitui a avaliação de Profissionais da Saúde.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.