Nesta minha coluna na Isto É Bem-estar tenho o propósito de falar sobre saúde mental, e todos sabemos que não há saúde mental sem relacionamentos interpessoais saudáveis. Por exemplo, ao falar sobre personalidade na coluna do dia 17/10/23, tratei o modelo dos 5 fatores, composto por dimensões capazes de descrever e explicar o nosso funcionamento. Duas dessas dimensões são essencialmente interpessoais: extroversão e amabilidade. Ainda, na coluna do dia 07/11/23 falei sobre a teoria do apego, modelo central do desenvolvimento do ser humano focado nas suas relações interpessoais. A coluna de hoje é sobre mentalização, processo que surge desse apego e que considero ser o centro da nossa saúde mental, justamente por ser um processo essencial para relações interpessoais saudáveis.

Compreender a nós mesmos e nos relacionar com os outros são partes complexas, mas essenciais, da experiência humana. No cerne de como damos sentido ao nosso mundo interior e social está o processo conhecido como mentalização. Mentalizar envolve perceber comportamentos e expressões, próprias e dos outros, e interpretá-los à luz de pensamentos, sentimentos, desejos e crenças subjacentes. Requer a integração de informações de estados mentais atuais e passados para compreender as pessoas, tanto a nós mesmos quanto qualquer outra pessoa com quem a gente conviva ao longo do tempo.

A mentalização reúne todos esses dados internos para criar coerência sobre quem somos e como nos encaixamos no mundo. Mentalização nos dá uma base para desenvolver um sentido estável de identidade, agência e continuidade em situações de vida que inevitavelmente mudam. Mentalização envolve “imaginar” as emoções, intenções, desejos e motivos dos outros. Quando feita de forma suave e flexível, a mentalização também permite a interação social e o desenvolvimento da confiança através da compreensão de diferentes perspectivas. Isso nos permite ter empatia com os outros, apreciando como eles veem as situações a partir de seu ponto de vista único, frequentemente muito distinto do nosso. 

No entanto, a mentalização é um processo muito complexo e vulnerável a determinados eventos estressantes prévios ou a cada momento. Traumas, sobretudo ao longo do desenvolvimento, podem conferir a alguém uma vulnerabilidade maior a perder a eficiência desse processo de mentalização. Eventos estressantes agudos podem nos fazer mentalizar de uma maneira muito diferente o conteúdo da mente de alguém à nossa frente. Com uma capacidade enfraquecida de compreender mentalmente a nós mesmos e aos outros, nossas relações interpessoais se deterioram, perdemos nossa capacidade de perseguir objetivos importantes para nós (aproveite e veja a coluna do dia 23/01 sobre “objetivos que funcionam!”), e assim nossa saúde mental é severamente prejudicada. Vou explicar de uma maneira mais prática através dos 3 modos de mentalização social.

 

Mentalização social: “I-mode”, “Me-mode” e “We-mode”

O “I-mode” se refere à capacidade de manter um senso coerente de noção de si e agência: senso de identidade estável e contínuo ao longo do tempo, bem como a capacidade de administrar estados emocionais e impulsos de maneira razoável. Quando o “I-mode” funciona de forma eficaz, os indivíduos são capazes de inibir impulsos imediatos e manter a estabilidade na sua identidade. No entanto, quando o “I-mode” está comprometido, os indivíduos podem enfrentar desafios na gestão dos seus estados emocionais, tornar-se propensos a comportamentos impulsivos e lutar para manter uma ideia suficientemente estável de si.

Por sua vez, o “Me-mode” abrange as habilidades auto reflexivas e contemplativas do indivíduo. Envolve o processo de mentalização através do que alguém reflete sobre seus próprios pensamentos, sentimentos e experiências. O “Me-mode” desempenha um papel significativo na formação do autoconceito de um indivíduo e na compreensão de seu próprio mundo interno. Nós não somos o que nós pensamos e sentimos, mas somos alguém que consegue examinar a uma certa distância o que pensamos e sentimos.

Por último, o “We-mode” se refere diretamente às interações e relacionamentos interpessoais. Neste modo, os indivíduos são capazes de se concentrar nos outros, ter empatia com as suas experiências e motivações, e compreender diferentes perspectivas. O “We-mode” facilita o desenvolvimento de relacionamentos íntimos, respeito mútuo e um sentimento de intimidade com os outros. Quando funciona sem problemas, o “We-mode” permite que os indivíduos se sintam compreendidos, efetivamente conectados e menos sozinhos. Nestes tempos modernos, os momentos de comunhão verdadeira parecem raros mesmo entre pessoas que, à primeira vista, parecem próximas…

Em resumo, o funcionamento eficaz dessa tríade de mentalização social (“I-mode”, “We-mode”, “Me-mode”) é essencial para uma saúde mental em dia! Mentalização tem relação com a nossa identidade, nossa capacidade reflexiva, regulação emocional, agência sobre os nossos objetivos e comunhão com outras pessoas! Sem cada um desses eixos funcionando bem, não há como ter saúde mental! Esse tema é muito rico e complexo, e voltará certamente a ser o foco desta coluna na Isto É Bem-estar.

 

*O conteúdo desta matéria tem caráter informativo e não substitui a avaliação de Profissionais da Saúde.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ. 

Referências Bibliográficas

Handbook of mentalizing in mental health practice. Bateman, Anthony; Fonagy, Peter. 2019.
Cambridge Guide to Mentalizing-Based Treatment (MBT). Bateman, Anthony; Fonagy, Peter; Campbell, Chloe; Luyten, Patrick; Debbané, Martin. 2023