É cada vez mais comum ver grandes veículos de imprensa e perfis nas redes sociais defenderem a obesidade como algo saudável. “Romantizam” o termo, ou até mesmo acusam de gordofobia quando se alega que a obesidade é doença.
Agora, foi a vez da mudança do termo. Cientistas das universidades da Irlanda College Cork e Galway lançaram um manifesto para proibir o termo “obesidade” e a substituição por “desregulação crônica do apetite”, reforçando a ideia de remover o estigma sobre a doença e refletir sobre as causas e as consequências da condição.
Tenho alguns pontos importantes para discordar
- A obesidade é multifatorial, desencadeada por diversos fatores, sendo eles genéticos, emocionais, alterações hormonais, sedentarismo etc. Logo, a “desregulação crônica do apetite” não é a única causa do desenvolvimento e manifestação da patologia.
- O estigma diz mais sobre a índole dos que julgam. A mudança do termo não mudará a percepção e o caráter do que ofende, e sim a educação e explicação por Profissionais de forma incessante de que obesidade é uma patologia —reforçando que isso não é gordofobia. Dito isso, não resolveremos o problema mudando a nomenclatura, já que a própria palavra obesidade, de acordo com Cunha (2010), é “derivada do vocábulo latino obesîtas, sendo composta pelo prefixo -ob, que significa ‘em’, ‘por’ ou ‘sobre’, e pelo particípio passado do verbo edere, comer ou devorar. Em latim, obesus significa completamente nutrido, nutrido em excesso”.
- O respeito é direito e dever do cidadão, sendo uma condição si ne qua nom para a vida em sociedade. Devemos ensinar sobre a obesidade, como se desenvolve, a forma de tratamento e políticas de prevenção e promoção de saúde desde cedo, pois, daqui pra frente, a obesidade só aumentará e temos que focar na solução, não em querer maquiar um problema crescente de saúde pública.
E sim, como profissional, eu tenho o tal do local de fala
Durante longos anos, acompanhei grupos de adolescentes e adultos com obesidade e pude entender a complexidade e multifatoriedade da patologia, reforçando e tendo a certeza de que não é desencadeada somente por uma desregulação no apetite.
Foram centenas de pessoas atendidas com diversos relatos de casos. Trago relatos reais, respeitando, é claro, o sigilo de cada uma das pessoas —todos os nomes aqui colocados são fictícios para preservar a integridade do paciente.
Daniela, 16 anos, sofria de obesidade mórbida. Foi abusada sexualmente durante a infância por uma pessoa próxima da família e, como era ameaçada e tinha medo de contar, se trancava no seu quarto e comia até passar mal. Sofria de síndrome metabólica, além de problemas relacionados à mobilidade.
Matheus, 18 anos, sofria de obesidade mórbida. Sua mãe o espancava por qualquer motivo. Porém, no momento da refeição, ela dava atenção e “amor”. Assim, ele associava o comer ao amor e comia até ter essa boa sensação. Com essa idade, já tinha alterações no colesterol, triglicérides e esteatose hepática não-alcoólica.
Mariana, 17 anos, vinha de uma família obesa. Tentava de tudo e não conseguia. Por isso, desistiu. Mariana tinha problemas sérios de mobilidade, que resultaram em uma grave depressão e falta de sociabilização.
João, 14 anos, começou a consumir alimentos calóricos escondido compulsivamente. Chegou a mais de 100 quilos. Depois disso, aventurou-se em dietas restritivas e medicamentos, desencadeando a anorexia e bulimia. João sofria de transtornos compulsivos e ficou nesses processos extremos até chegar ao tratamento correto e multidisciplinar, com acompanhamento psicológico.
Carolina, 13 anos, era a menina mais sorridente de todo o grupo, mas a que tinha os relatos mais extensos e ricos em detalhes com seus momentos de solidão e tristeza profunda, que a deixavam na cama por dias e se medicando sem parar. Não consumia muitos alimentos, entretanto, era extremamente sedentária e abusava de medicamentos sem orientação médica. Estava com obesidade grau 2, mostrava-se feliz, sentia-se “saudável”, mas, dia após dia, sofria com o simples fato de ter falta de ar ao subir um lance de escadas e com seus momentos de tristeza sem motivos.
Todas essas pessoas tinham algo em comum além da obesidade. Tinham histórias. Histórias e gatilhos do porquê desencadearam a obesidade. Quando começamos a entender o motivo, o porquê, na maioria das vezes, são histórias variadas e/ou a genética que desencadearam esse processo.
E você quer saber por que eu e muitos profissionais, junto à Organização Mundial de Saúde (OMS) e órgãos competentes (como a ABESO), definimos a obesidade como uma doença? São diversos os motivos e temos que falar cada vez mais sobre eles.
- PORQUE a OMS, durante a pandemia, fez um alerta sobre a preocupação da obesidade como uma endemia e um problema de saúde pública, sendo a segunda maior causa de mortalidade no mundo.
- PORQUE a obesidade é uma doença inflamatória, gerando um processo inflamatório em todo o organismo e desencadeando inúmeras patologias, que causam mortalidade.
- PORQUE o adipócito, célula de gordura, uma vez ali estará sempre pronto para estocar mais e mais gordura, crescer (hipertrofia) e se dividir (hiperplasia).
- PORQUE sabemos que a duração da obesidade é inversamente proporcional à expectativa de vida.
- PORQUE a obesidade/excesso de gordura corporal está associada ao desenvolvimento de comorbidades como diabetes, problemas cardiovasculares, problemas psicológicos, problemas de mobilidade, desenvolvimento de certos tipos de cânceres etc.
- PORQUE sabemos que gestantes com obesidade têm um maior risco durante o parto —para ela e para o bebê.
- PORQUE você pode estar sem nada hoje, mas o excesso de gordura corporal é silencioso.
- PORQUE a obesidade reduz a massa cinzenta, desencadeando problemas relacionados à impulsão e compulsão.
Você pode se aceitar para, assim, dar o devido valor à sua vida e mudar. Porém, aceitar-se e ficar onde está é também aceitar uma série de problemas relacionados à saúde. Sim, são inúmeras consequências de se aceitar assim e não se cuidar. Reforço: há inúmeras consequências ao maquiar o problema.
Atendi um homem com obesidade que dizia ser saudável pelos seus exames bioquímicos e, por conta das dificuldades na mobilidade, caiu e torceu o pé. Teve que passar por uma cirurgia e, devido ao excesso de gordura corporal e seu processo inflamatório geral no corpo, teve inúmeras complicações no decorrer da cirurgia. Ele afirmava ser “saudável”, mas o peso o fez torcer o pé e desenvolver complicações em sua cirurgia. Esse mesmo paciente, quando falamos que precisaria emagrecer pela sua saúde, entendeu como uma ofensa.
Da mesma forma, vejo diversos vídeos na internet em que pessoas com obesidade dizem: “faço exames todo ano e não tenho patologias, mas o médico disse que terei que emagrecer, se um dia quiser engravidar. Não é porque você é gorda que é desregulada.” A função do médico é garantir a saúde e a vida do paciente. Imagine se ele for questionado por esse tipo de tratativa? Ele faz essa pontuação mesmo com os exames estando normais, já que, durante uma gestação, se você estiver com todos os exames dentro do padrão (porém, no limite) a possibilidade de alteração durante o período gestacional é muito grande, podendo desenvolver problemas seríssimos durante o parto e afetar a sua saúde e do seu bebê. Temos que enfrentar a realidade ou enfrentamos as consequências, é questão de escolha.
Outra frase que me chama a atenção é: “mesmo que com a aceitação, é comum que haja questionamentos sobre ‘como estão os exames’”. O impasse também gera debates entre ativistas e militantes antigordogobia críticos à patologização do corpo gordo.” Obesidade é sim uma patologia, definida pela Organização Mundial de Saúde como uma doença crônica, que se caracteriza principalmente pelo acúmulo excessivo de gordura corporal, sendo considerada uma pandemia mundial do século XXI, que duplicou de tamanho desde 1980.
Aceitação e temas ideológicos acabam se misturando com o fato e a ciência. Todos podem se aceitar, sentir-se bem, mas, acima de tudo, entender que é uma patologia crônica, multifatorial e inflamatória. Sentir-se bem para se cuidar é uma coisa, agora, aceitar-se para se acomodar em uma condição e garantir que esse é seu “novo normal”, é deixar que a doença tome conta da sua vida.
Para vocês terem uma ideia, pessoas com obesidade severa podem ter uma expectativa de vida reduzida em 20 anos em homens e 5 anos em mulheres. Além disso, durante o período de pandemia, pessoas com obesidade (de qualquer grau), de acordo com o BMJ, tiveram, pelo menos, 32% mais chance de morrer por covid-19 do que uma pessoa não obesa. Um estudo brasileiro publicado no The Lancet mostrou que, pacientes de 20 a 39 anos que sofrem de obesidade, as chances de óbito são 4.4 vezes maior do que em pacientes saudáveis —em casos de pacientes obesos que também possuem diabetes ou doenças cardiovasculares, o aumento é considerado significativo.
Por que temos que entender que a obesidade precisa ser vista com mais atenção, prevenida, tratada e não incentivada? A estimativa, de acordo com um estudo analisando a curva de crescimento ao longo dos anos é de que, em 8 anos, 7 em cada 10 brasileiros poderão estar acima do peso. Dados desse estudo intitulado “a epidemia de obesidade e as doenças crônicas não-transmissíveis, causas, custos e sobrecarga do SUS” mostram que, daqui a 8 anos, 68% dos brasileiros poderão estar com excesso de peso, o que significa que sete em cada dez pessoas serão acometidas e, no caso da obesidade, 26% dos indivíduos poderão ter problemas.
O acúmulo excessivo de gordura corporal está associado a um aumento no risco de mais de 30 doenças crônicas não transmissíveis, em maior ou menor grau. Por isso, temos que incentivar o controle e orientar a população a enfrentar e se cuidar.
O custo e a sobrecarga para o SUS também aumentou: somente em 2019, o gasto direto com DCNTs no país atingiu R$ 6,8 bilhões, sendo 22% desse valor atribuído ao excesso de peso e obesidade. Além disso, o levantamento mostrou que houve 128.71 mil mortes, 495.99 mil hospitalizações e 31.72 milhões de procedimentos ambulatoriais realizados pelo SUS atribuídos ao excesso de peso e obesidade. De acordo com a OMS, anualmente, a obesidade mata mais de 4 milhões de pessoas.
E você ainda pode me dizer: “beleza, mas meu corpo, minhas regras.” A obesidade também pode levar a um fenômeno que chamamos de programação fetal. As condições ambientais no período fetal influenciam na programação metabólica, ou seja, o ambiente da mãe gestante e o estilo de vida é capaz de influenciar na saúde do bebê.
Os pais (pai e mãe) têm influência genética no momento da fecundação na formação do feto e a mãe tem a importância de passar os nutrientes adequados para a saúde daquele bebê. A programação fetal é desencadeada por respostas adaptativas do feto/recém-nascido às condições maternas inapropriadas, sendo que as consequências dessa programação dependem do tempo, grau e duração da exposição. Ele não é obrigado a aceitar essa condição que você escolheu. Estou dizendo sobre gerações, sobre previsões absurdas de um mundo cheio de patologias desencadeadas pela inatividade, consumo de alimentos industrializados em excesso, genética etc.
Como profissional, minha função é sempre informar, falar e repetir para promover a saúde das pessoas. Aqui, busco sempre a consciência para uma vida melhor!
Deixo aqui muitos artigos científicos relacionados à obesidade nas referências para leitura.
*O conteúdo dessa matéria tem caráter informativo e não substitui a avaliação de Profissionais da Saúde.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.
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