Na coluna de 15 dias atrás, tratei de um tema muito importante, LINK “Mentalização”, que envolve perceber comportamentos, expressões próprias e dos outros, e interpretá-los à luz de pensamentos, sentimentos, desejos e crenças subjacentes. Essa descrição pode ser um pouco confusa, e justamente por isso resolvi dedicar mais algumas colunas a ele. 

Perceba que mentalização envolve “perceber” fenômenos mentais, e note que isso é diferente de sentir uma emoção ou ter um pensamento. Mentalização significa perceber que se está sentindo uma emoção ou tendo um pensamento. Isso significa que mentalização inclui um certo distanciamento em relação ao que sentimos e pensamos, o que é muito útil (e fundamental, importante dizer) para que a gente possa administrar estados emocionais e impulsos ao longo do tempo, assim como construir uma narrativa coesa de identidade que possa ter estabilidade relativa e amadurecimento ao longo do tempo.

Mas mentalização é muito (muito mesmo) mais do que simplesmente uma regulação emocional e processamento de pensamentos: mentalização é um processo fundamental para as relações interpessoais porque inclui a conexão com o outro. Veja bem: se nós somos capazes de perceber o que estamos sentindo e processamos essas emoções, também somos capazes de fazer isso com o outro. Isto é, de alguma forma, nós conseguimos produzir uma versão da mente do outro na nossa própria mente. Os detalhes importam: veja que eu escolhi a palavra “versão”. Sim, é uma versão, uma imaginação. Claro, não é uma cópia perfeita da mente do outro. Assim, a nossa mentalização do estado mental do outro (emoções, pensamentos, motivos, intenções) é sempre, em algum grau maior ou menor, falha.

Ninguém mentaliza perfeitamente, ainda que curiosamente algumas pessoas acreditem que são capazes de intuir perfeitamente a intenção dos outros. Isto é, o estado mental dos outros não é transparente para nós, mas opaco. Estimamos o que os outros pensam e sentem, e essa estimativa é utilizada por nós na relação com as outras pessoas. A mentalização é, portanto, fundamental para as nossas relações interpessoais, tema central da existência dos seres humanos.

Falar da relação com as outras pessoas nos traz outro conceito: confiança epistêmica. Esse nome um tanto pomposo esconde um conceito simples: “confiança na autenticidade e relevância pessoal do conhecimento transmitido interpessoalmente sobre como o ambiente social funciona e como melhor navegar nele”. Qualquer um que veja uma criança pequena interagindo com os seus pais percebe que essa criança a todo momento faz checagens com seus pais a respeito de como o ambiente funciona. Não poderia ser diferente: essa criança pouco sabe sobre o mundo; já seus pais, sabem muito (esperamos). Por exemplo, ao cair se bater a cabeça, a criança vai considerar não somente o que sentiu após esse evento, mas também vai considerar a reação dos pais (ou de outro adulto à sua volta). Será que o que aconteceu foi muito grave? Será que ela vai poder contar com os pais se ela se machucar? 

O que importa aqui é a confiança: uma via expressa de informação entre os pais (e outros adultos) para criança. Esse processo se torna mais e mais complexo ao longo do desenvolvimento do indivíduo, envolvendo mais e mais pessoas na medida que ajuda a organizar uma rede de suporte social mútuo, elemento que sabemos ser saudável para qualquer adulto. Mentalização é um processo que permite que as pessoas tomem uma posição com confiança epistêmica (veja a definição alguns parágrafos acima!) em relação aos outros, e assim possam se beneficiar tanto de aprendizado quanto de intimidade.

Para sobreviver (e manter a nossa saúde mental) nas redes socialmente complexas que os humanos habitam, temos que ser capazes de aprender com outras pessoas. Ao aprender as habilidades que precisamos para nos desenvolver, observamos e ouvimos aqueles mais hábeis, evitamos punições e ganhamos recompensas imitando (ou fazendo o contrário dos outros) os outros. Tomar decisões complexas incorporando o ponto de vista das outras pessoas nos ajuda a aprender tanto a respeito dos outros quanto a respeito de nós mesmos, através de interações sociais progressivamente mais complexas. Aprender eficientemente com os outros é uma parte central da existência humana e é crucial para a nossa saúde mental. 

Esse conceito foi proposto pelo inglês Peter Fonagy, de quem trago uma citação traduzida: “Se sinto que sou compreendido, estarei disposto a aprender com a pessoa que me entende, que considero um colaborador potencial confiável. Isto incluirá aprender sobre mim mesmo, mas também aprender sobre os outros e sobre o mundo em que vivo”. Eu expliquei anteriormente que nós produzimos uma versão da mente do outro na nossa mente. Mas, claro, o outro produz uma versão da nossa mente na sua própria mente. Mais interessante ainda: nós vamos julgar se essa versão que o outro criou da nossa própria mente tem ou não tem acurácia. Se sentirmos que não tem, nossa confiança vai por água abaixo… Se nos sentirmos compreendidos, se identificarmos que o outro captou a nós mesmos com acurácia, confiamos nessa pessoa.

Você já deve ter percebido que a única maneira de alguém nos ouvir é ouvir a história dessa pessoa. Alguém pode pensar: “essa pessoa precisava desabafar antes de ouvir a opinião do outro, que costuma vir com algumas partes difíceis de ouvir!” Desabafar faz parte? Sim, faz parte. Mas vamos muito além disso: nós confiamos no outro se o outro nos ouviu e mentalizou a nossa mente com acurácia. Isso vale para crianças, e vale para adultos. E vale, principalmente, quando nossa saúde mental está comprometida, já que são nesses momentos que mais precisamos de outros seres humanos para nos recuperar: é nesse processo de mentalização mútua que as portas da confiança epistêmica se reabrem e a saúde mental é recuperada!

 

*O conteúdo desta matéria tem caráter informativo e não substitui a avaliação de Profissionais da Saúde.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.