De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de pessoas com diabetes triplicou nas últimas duas décadas, passando de 151 milhões em 2000 para mais de 463 milhões em 2020. Essa tendência alarmante, que coloca uma carga significativa sobre os sistemas de saúde em todo o mundo, ressalta a necessidade imperativa de inovações no tratamento e prevenção da doença. 

Em meio a esse cenário, tive a honra de entrevistar o Dr. Andre Murad Faria, CRM-SP 131486, renomado médico endocrinologista, doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo, que dedicou boa parte de sua trajetória profissional no tratamento do diabetes. Neste artigo, ele compartilha sua perspectiva valiosa sobre as mais recentes tecnologias no cenário do diabetes, lançando luz sobre como elas estão transformando o cuidado do paciente, oferecendo esperança para um futuro mais saudável e equilibrado.

 

Com a evolução da tecnologia, de que maneira os dispositivos de monitoramento contínuo de glicose têm impactado a gestão do diabetes?

O surgimento da tecnologia de monitoramento contínuo de glicose (MCG) veio para transformar o cuidado e os desfechos dos pacientes diabéticos. Esses sistemas monitoram continuamente os níveis de glicose (açúcar no sangue), fornecendo atualizações em tempo real por meio de um dispositivo conectado ao corpo da pessoa, cuja leitura é feita pelo simples escaneamento por aproximação física, por meio de um app do smartphone. Existe uma máxima no mundo da administração que diz: “quem não mede, não gerencia”. Esta afirmativa certamente pode ser extrapolada para o cuidado de pacientes com diversos tipos de doenças crônicas, incluindo o diabetes.

A administração de insulina e o MCG mudaram o paradigma de cuidado da doença, migrando de várias picadas no dedo ao dia, para alguns poucos toques em um telefone celular. Esses dispositivos permitem verificar em tempo real se a tendência da glicemia é alta ou baixa e, por conseguinte, tomar medidas preventivas contra hipo e hiperglicemia, seja a partir de ajustes nas intervenções dietéticas, seja nas terapias empregadas com uso de medicamentos hipoglicemiantes e/ou insulina.

Por serem importantes adjuvantes nesse processo de evitar os extremos, contribuem diretamente para manter os níveis glicêmicos por muito mais tempo dentro das faixas consideradas ideais, resultando em menores índices de complicações agudas potencialmente graves e fatais, além obviamente de prevenir as complicações crônicas sabidamente associadas ao mau controle do diabetes, incluindo problemas na retina, rins, nervos periféricos e doença cardiovascular causada por aterosclerose, dentre outras.

 

Como a telemedicina tem transformado o tratamento de pacientes diabéticos?

Um bom efeito colateral da pandemia de COVID-19 foi que ela levou forçadamente à rápida aceleração da adoção da telemedicina no Brasil e no mundo. De noite para o dia, fomos forçados a nos adaptar à telemedicina porque o atendimento presencial não era mais seguro no cenário da pandemia.

Pacientes com diabetes, e outras doenças crônicas,  passaram a ter uma maior conveniência e flexibilidade com os teleatendimentos, enquanto os profissionais de saúde se beneficiaram com menos consultas perdidas ou cancelamentos. Além disso, não ter que aguardar nas salas de espera das clínicas e hospitais, aumentou a privacidade das pessoas e contribuiu para reduzir o risco de propagação das infecções. É fundamental também ressaltar que, em um país de dimensões continentais como o Brasil, existe grande escassez de endocrinologistas fora dos grandes centros urbanos e, portanto, o advento dessa nova modalidade de atendimento permitiu essencialmente que pacientes em locais mais remotos do país pudessem ter acesso a profissionais especializados no manejo da doença, dando suporte à distância, a outros médicos generalistas e profissionais de enfermagem presentes nessas regiões, notadamente nos casos mais complexos que necessitam de múltiplas doses de insulina ao dia ou em uso de terapia com bomba de insulina.

No entanto, tal mudança e quebra de paradigma também trouxe consigo alguns desafios como, por exemplo, uma menor realização de exames importantes para controle da doença e comorbidades associadas. Além disso, naturalmente, a ausência do contato físico nas consultas presenciais reduz o envolvimento com a equipe de saúde e impede pontos importantes do cuidado, como o exame físico dos pés, por exemplo. Várias pessoas também consideram mais estressante o uso da telemedicina, demonstrando que não é possível assumir que essa tecnologia é conveniente e confortável para todos. Em linhas gerais, a telemedicina costuma ser menos adequada para pessoas menos familiarizadas com tecnologia, pessoas com necessidades de saúde complexas e pessoas que requerem um exame físico.

 

Há alguma nova terapia, medicamento ou abordagem de tratamento para o diabetes que tem sido especialmente promissora nos últimos anos?

Na última década, temos vivenciado uma verdadeira revolução no surgimento de modalidades terapêuticas do diabetes. Pela primeira vez na história, surgiram terapias que, além do controle glicêmico, passaram a ter um impacto significativo também na redução de importantes complicações associadas ao diabetes tipo 2, tais como: falência renal, insuficiência cardíaca, infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral e mortalidade cardiovascular. A melhora de vários desses desfechos tem sido possível após a introdução de duas novas classes de medicamentos no arsenal terapêutico do diabetes nesse período: os inibidores de SGLT2 e os agonistas do GLP-1. De forma muito importante, esses medicamentos também podem auxiliar de forma expressiva na redução do peso, ponto fundamental no tratamento desses pacientes, visto que o sobrepeso e a obesidade são altamente prevalentes como comorbidades e têm papel crucial na gênese da doença. Tratar diabetes tipo 2, sem se preocupar em reduzir o excesso de gordura corporal classicamente presente nesses pacientes, é coisa do passado. Felizmente, têm surgido vários estudos com outras novas medicações (agonistas hormonais duplos ou triplos – GLP-1, GIP e Glucagon) com resultados extremamente promissores tanto no contexto do controle do diabetes, como na redução do peso corporal, com resultados que chegam a se aproximar a eficácia vista até então somente em cirurgias bariátricas.

Já no tratamento do diabetes tipo 1, grandes avanços têm sido alcançados com o surgimento de bombas de insulina de última geração. Esses aparelhos possuem um reservatório contendo insulina, que é ligado a um tubo que se conecta a uma cânula inserida abaixo da pele do abdome. Alguns sistemas mais modernos existentes hoje, utilizam dispositivos de monitoramento contínuo de glicose que “conversam” via wireless em tempo real com a bomba de insulina. Por meio de algoritmos inteligentes, esses sistemas permitem que a administração de insulina pela bomba seja automaticamente calculada a partir dos dados obtidos pelo monitoramento contínuo da glicose e da glicemia alvo estabelecida pela equipe multidisciplinar de saúde. Nesse contexto, os estudos comprovam que esses dispositivos inteligentes resultam em melhor controle glicêmico e redução de hipoglicemias graves.

Quais são as maiores barreiras para a adoção dessas novas tecnologias no tratamento do diabetes e como você acredita que essas barreiras possam ser superadas?

Sem sombra de dúvidas, hoje o grande limitante de adoção dessas novas tecnologias ainda é o custo elevado, tanto de dispositivos de MCG, que possuem ampla aplicação no monitoramento de grande parte dos diabéticos, como de tratamento, no caso das bombas de insulina, indicadas para quadros específicos de diabetes insulinodependente de difícil controle e maior instabilidade glicêmica. É fundamental ressaltar também que é necessário um nível socioeducacional razoável para manejo adequado desses dispositivos, principalmente das bombas de insulina. Assim como ocorre em vários outros tipos de tecnologias, a tendência é a esperança que, com o passar do tempo, novos desenvolvimentos e aperfeiçoamentos nesses instrumentos de grande utilidade no manejo do diabetes, possam ir barateando e se tornando mais acessíveis a um maior número de portadores da doença.

 

A inteligência artificial e a análise de big data têm sido muito faladas no campo da medicina. Como essas tecnologias podem vir a impactar o tratamento e o controle do diabetes?

A inteligência artificial (IA) tem atraído cada vez mais atenção para o manejo do diabetes, no tocante tanto a estratégias de prevenção, quanto de tratamento desta condição. A IA pode, por exemplo, contribuir para o desenvolvimento de modelos de previsão para estimar não somente o risco de desenvolvimento do diabetes, mas também de suas complicações crônicas e agudas relacionadas.

A IA tem ainda papel fundamental no cumprimento de dois grandes objetivos no controle do diabetes: atingimento de glicemia quase normal e redução do fardo que a doença carrega consigo. É fundamental também que sejam desenvolvidas novas ferramentas que possam contribuir para reduzir a sobrecarga mental gerada pelo tratamento da doença, este que costuma exigir dos pacientes múltiplas decisões ao longo do dia, no que concerne à dosagem de insulina em torno das refeições, exercícios e outras atividades.

Em usuários de bomba de insulina, a incorporação da IA ​​por meio do conceito de um “gêmeo digital”, constantemente atualizado, pode ajudar a contornar diversos desafios diários, promovendo maior adesão farmacológica e fornecendo uma gestão mais personalizada. O algoritmo de machine learning pode usar sensores fisiológicos e/ou de atividade incorporados em smartphones ou wearables para se comunicar com o gêmeo digital e fornecer terapia personalizada que resulte em melhora da glicemia, e redução da carga gerada pela doença. Por exemplo, a geolocalização em um smartphone pode ser usada para prever o conteúdo de uma próxima refeição com base no comportamento passado e então administrar a dose de insulina apropriada antes da refeição. Além disso, a detecção de gestos manuais pode determinar quando a refeição começa ou termina e a quantidade de comida consumida. Os monitores de condicionamento físico, por sua vez, podem identificar a quantidade, intensidade e resposta glicêmica ao exercício para que a administração de insulina seja ajustada adequadamente.

*O conteúdo desta matéria tem caráter informativo e não substitui a avaliação de Profissionais da Saúde.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.