Com tantos aplicativos de photoshop, conseguimos mudar todo o nosso corpo. Sumimos com as celulites, afinamos a cintura e até tiramos as dobrinhas —e é claro que, com isso, aumentaram os relatos associados a distúrbios de imagem corporal. Porém, mesmo para os que não buscam o perfeccionismo ou uma imagem específica, a Internet virou uma “terra de ninguém” e com pessoas julgando e jogando pedras por qualquer coisa. Esses dias fiz um story e tenho os meus dentes debaixo um pouco tortinhos. Acreditem vocês, foram pegar no meu pé. Como não ligo para meus dentes tortos, toquei o barco. Mas e quem se importa? Isso pode gerar um grande problema.

Nesse mundo de julgamentos virtuais, no meio de imagens retocadas por aplicativos e cirurgias plásticas que alteram a aparência com objetivo de ficar cada vez mais próximo dos filtros, a distorção de imagem corporal torna-se cada vez mais comum. Um estudo de 2021, publicado na revista JMIR Formative Research¹ mostrou que, de mais de 10.000 participantes da pesquisa, 59% das mulheres, 39% dos homens e 75% dos jovens de 16 a 25 anos relataram problemas com a imagem corporal. A prevalência desses problemas pode tornar difícil descobrir se pensamentos negativos sobre seu corpo são, de fato, um transtorno dismórfico corporal. Por isso, temos que estar sempre atentos a pontos importantes que podem desencadear problemas.

O que é a dismorfia corporal?

O transtorno dismórfico corporal foi descrito pela primeira vez em 1891, pelo médico italiano Enrico Morselli. Segundo os especialistas que o estudaram, ele afeta de 1,7% a 2,9% da população, tanto homens quanto mulheres —acredita-se que hoje em dia o problema atinja cerca de 4 milhões de pessoas só aqui no Brasil, e até 2% da população mundial.

De acordo com a Mayo Clinic², a dismorfia corporal é um distúrbio de saúde mental em que uma pessoa tem uma visão distorcida da sua aparência física, sendo mais comumente conhecida como Transtorno Dismórfico Corporal (TDC). Pode ser debilitante e ter um impacto significativo na vida de uma pessoa, interferindo nas atividades diárias, nas relações sociais e na qualidade de vida em geral.

As pessoas com dismorfia corporal podem ficar excessivamente preocupadas com qualquer “falha” percebida em sua aparência física, como uma característica facial, peso, musculatura, formato do corpo ou uma “imperfeição” específica —por isso é tão importante termos responsabilidade sobre o que falamos na Internet. Essa preocupação pode levar a sentimentos de angústia, ansiedade, com consequente comprometimento na vida social do indivíduo afetado. Em sua essência, a dismorfia corporal é uma distorção cognitiva, já que a percepção de um indivíduo sobre seu próprio corpo é distorcida, levando-o a se ver de forma negativa.

O ADAA³ (Anxiety and Depressive Association of America), reforça que as causas do TDC não são claras, mas certos fatores biológicos e ambientais podem contribuir para o seu desenvolvimento, incluindo predisposição genética, fatores neurobiológicos como mau funcionamento da serotonina no cérebro, traços de personalidade e experiências de vida —por exemplo, maus-tratos na infância, trauma sexual, abuso.

Sintomas

O distúrbio envolve preocupações que podem ocupar mais de uma hora do seu dia e consistem em obsessões e compulsões relacionadas a consertar ou melhorar essas “imperfeições” percebidas. Além disso, a principal característica do transtorno dismórfico corporal é perceber uma “falha” na própria aparência que não é perceptível para os outros. De acordo com a APA⁴, essa falha percebida pode ser completamente imaginada ou tão pequena que ninguém mais a veria.

Além de ser um distúrbio psiquiátrico, é classificado como transtorno obsessivo-compulsivo e transtornos relacionados na quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos de Saúde Mental (DSM-5)5, o guia oficial para diagnosticar condições de saúde mental —o que significa que você deve atender a um conjunto específico de critérios para obter um diagnóstico. Dessa forma, os quatro principais critérios para detectar o TDC descritos no DSM-5 são:

  1. Preocupação com um ou mais “defeitos” percebidos ou “falhas” na aparência física de alguém que não são observáveis ou parecem leves para os outros.
  2. Realização de comportamentos repetitivos —como olhar no espelho e se arrumar excessivamente —, ou atos mentais —como comparar a própria aparência com a de outras pessoas — em resposta às preocupações com a aparência.
  3. Experimentar sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas como resultado dessa preocupação, ou seja, suas preocupações com a aparência podem interferir na sua capacidade de realizar seu trabalho, socializar e/ou viver sua vida de outra forma.
  4. As preocupações com a aparência não são melhor explicadas por outro transtorno mental, como um distúrbio alimentar. Por exemplo, alguém com um transtorno alimentar pode ter sintomas de transtorno dismórfico corporal, como preocupação obsessiva com peso, gordura corporal ou tamanho corporal. No entanto, no TDC, a preocupação geralmente é focada em uma área corporal específica, não no peso ou tamanho geral.

Sinais mais comuns de comportamentos

Existem alguns comportamentos comuns que um Profissional de Saúde especializado deve observar. Os sinais mais comuns de comportamentos relacionados ao transtorno dismórfico corporal são:

  • Verificar repetidamente sua aparência em espelhos ou superfícies reflexivas pelas quais você passa;
  • Tentar modificar sua aparência por meio de práticas como exercícios excessivos, cutucar a pele ou práticas de higiene excessivas (transtorno obsessivo compulsivo ou TOC) —como ter uma extensa rotina de maquiagem que você não pode sair de casa sem fazer ou que precisa ser reaplicada a cada hora sem falta;
  • Comparação constante da sua aparência com a dos outros;
  • O nível de preocupação que alguém com TDC tem com suas “falhas” percebidas pode ser extremamente debilitante e levar a baixa auto-estima, isolamento social e até pensamentos suicidas.
  • Superestimar a importância de sua aparência em situações sociais e pensar que todos estão olhando para você por conta da aparência;
  • Não ter tranquilidade para falar da sua aparência e se esconder atrás das roupas.

Embora pesquisas sobre a associação entre transtorno dismórfico corporal e transtornos alimentares sejam escassas, um estudo de 2020 publicado na revista Eating and Weight Disorders6 entrevistou 1.665 membros de academias e descobriu que aqueles que apresentavam sintomas de um transtorno alimentar tinham 12 vezes mais chances de atender aos critérios para transtorno dismórfico corporal do que aqueles que não o fizeram.

Diferentes tipos de dismorfia:

  • Dismorfia facial. Comum entre pessoas com transtorno dismórfico corporal, embora não seja uma condição específica. A maioria dos indivíduos com TDC preocupa-se com aspectos do rosto que não são perceptíveis para os outros, como o tamanho ou formato do nariz ou a textura da pele ou do cabelo.
  • Dismorfia muscular. É um “especificador” para um diagnóstico de transtorno dismórfico corporal, o que significa essencialmente que é um tipo distinto de transtorno. Pessoas com dismorfia muscular podem acreditar que parecem fracas quando na verdade parecem normais ou até mesmo muito musculosas. Podem se envolver em levantamento de peso excessivo, uso de esteroides anabólicos androgênicos e/ou uma dieta muito restrita à base de proteínas para parecerem mais fortes e musculosos7.

Diagnóstico e tratamentos 

Antes de falar do tratamento, queria contar uma história. Uma vez avaliei 30 modelos lindas. Todas magérrimas, altas, perfeitas. Fiz o cálculo de IMC –um número subjetivo que utilizamos para avaliar como está o índice de massa corporal — e todas estavam abaixo do considerado saudável (quase com anorexia). Apliquei um questionário de imagem corporal que se chama BSQ (Body Shape Questionnaire, disponível no International Journal of Eating Disorders) e comparei com o SMT (Silhouette Matching Task). Acreditem: elas sentiam-se com uma imagem que consideramos quase sobrepeso. 

Por isso é importante saber se de fato se enxerga de acordo com a realidade. Para isso, é necessário fazer uma análise de composição corporal para saber como você está na realidade. Por isso, de vez em quando é essencial darmos um choque de realidade no nosso corpo. Há muitas formas muitas formas de fazer isso. Uma delas é o cálculo de IMC comparado ao SMT. Para saber seu IMC basta dividir seu peso (kg) por sua altura (m) ao quadrado.

IMC

Já no SMT, as imagens variam da magreza (número 1) à obesidade (acima de 7), proposta por Stundard et al (1983)8.

captura de tela 2023 05 15 as 223613 2 Distúrbio de imagem corporal: quando não nos enxergamos de acordo com a realidade
Reprodução. Stundard et al (1983).

Na imagem acima, escolha um número, relativo a como você se enxerga. Feito isso, observe seu IMC na tabela abaixo para analisar como está, de fato, agora.

Comparação imagem com IMC
Reprodução

É claro que o diagnóstico deve ser realizado com um profissional e com análises mais objetivas (incluindo questionários específicos, avaliações clínicas, antropométricas e de composição corporal). 

Falando em tratamentos, muitas vezes é realizada uma terapia cognitivo-comportamental (TCC), incluindo prevenção de exposição e resposta (ERP). Esse tipo de tratamento envolve aprender a desafiar pensamentos negativos e/ou distorcidos sobre seu corpo à medida que eles surgem, desenvolvendo suas habilidades de regulação emocional para que esses pensamentos não o afetem tanto e tentando se afastar de comportamentos como a verificação do corpo. e higiene excessiva, que reforçam pensamentos negativos sobre a imagem corporal.

Outra abordagem para o tratamento do transtorno dismórfico corporal é a terapia de aceitação e compromisso (TAC)9. A TAC se concentra na construção de habilidades de atenção plena e aceitação, bem como na criação de uma vida orientada por valores fora das preocupações com a aparência. O objetivo é afastar-se da preocupação com a imagem corporal e adotar uma abordagem mais neutra em relação ao corpo. É necessário sempre procurar um profissional para detectar previamente e auxiliar com tratamentos direcionados e terapias.

*O conteúdo dessa matéria tem caráter informativo e não substitui a avaliação de Profissionais da Saúde.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.

Referências Bibliográficas

¹Milton A, Hambleton A, Roberts A, Davenport T, Flego A, Burns J, Hickie I. Body Image Distress and Its Associations From an International Sample of Men and Women Across the Adult Life Span: Web-Based Survey Study. JMIR Form Res. 2021 Nov 4;5(11):e25329. doi: 10.2196/25329. PMID: 34734831; PMCID: PMC8603168.
²Mayo Clinic. Body dysmorphic disorder. Disponível em: https://www.mayoclinic.org/diseases-conditions/body-dysmorphic-disorder/symptoms-causes/syc-20353938 
³ADAA. Body dysmorphic disorder. Disponível em: https://adaa.org/understanding-anxiety/body-dysmorphic-disorder 
⁴APA.Body dysmorphic disorder. Disponível em: https://dictionary.apa.org/body-dysmorphic-disorder
5APA. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5-TR). Disponível em: https://www.psychiatry.org/psychiatrists/practice/dsm 
6Trott, M., Johnstone, J., Firth, J., Grabovac, I., McDermott, D., & Smith, L. (2020). Prevalence and correlates of body dysmorphic disorder in health club users in the presence vs absence of eating disorder symptomology. Eating and Weight Disorders - Studies on Anorexia, Bulimia and Obesity. doi:10.1007/s40519-020-01018-y 
7Tod D, Edwards C, Cranswick I. Muscle dysmorphia: current insights. Psychol Res Behav Manag. 2016 Aug 3;9:179-88. doi: 10.2147/PRBM.S97404. PMID: 27536165; PMCID: PMC4977020.
8Stunkard, A.J.; Sorenson, T.; Schlusinger, F. Use of the Danish Adoption Register for the study of obesity and thinness. In: Kety SS, Rowland LP, Sidman RL, Matthysse SW, editors. The genetics of neurological and psychiatric disorders. New York: Raven, 1983;115-20.
9Hong K, Nezgovorova V, Hollander E. New perspectives in the treatment of body dysmorphic disorder. F1000Res. 2018 Mar 23;7:361. doi: 10.12688/f1000research.13700.1. PMID: 29636904; PMCID: PMC5871801.